O tema da inclusão da mulher no mercado do trabalho tem sido cada vez mais debatido, e isso sem dúvidas mostra algum avanço na luta por reconhecimento e espaço no meio profissional. No entanto, os desafios na busca pela igualdade de género no trabalho ainda são imensos.
Felizmente, existem iniciativas em diversos setores que tem como objetivo impulsionar estas mudanças e fazer com que a realidade de mulheres em todo o mundo seja diferente.
Para falar sobre o assunto e ajudar-nos a perceber como empoderar as mulheres e promover a igualdade de género no trabalho, conversamos com Leila Portela, fundadora da Global Women in Tourism, uma Comunidade que promove o empoderamento das mulheres que atuam na atividade turística, uma das mais afetadas pela crise do Coronavírus.
A global WIT promove também discussão sobre a diversidade, inclusão e liderança feminina em toda a cadeia de valor do turismo. É a junção das duas áreas onde Leila tem vasta experiência e atua há mais de 10 anos, como Formadora, Consultora e recentemente como Mentora e Coach para mulheres.
Leia a entrevista completa e veja como projetos como esse podem ajudar a promover a igualdade de género no trabalho, de que forma as mulheres podem se destacar profissionalmente e, sobretudo, que mudanças são mais urgentes e necessárias neste momento.
1) Pode nos contar um pouco sobre sua trajetória profissional? Como chegou aonde está hoje?
A minha trajetória é recheada de desafios, composta por momentos altos e baixos e de grande aprendizagem. Para chegar até aqui, passei por situações dolorosas, que me patrocinaram várias razões para não ficar pelo caminho, porém, fizeram com que descobrisse em mim um ser persistente e resiliente.
Falar do meu percurso profissional, obriga-me a buscar as minhas origens. Dos valores e das pessoas que me inspiraram e fizeram parte do processo de transformação da Leila que hoje sou.
São Vicente, Cabo Verde é o meu berço, então, sou uma Mindelense que orgulha das suas origens. É deste povo alegre que devo as minhas raízes, daí o meu percurso tem entranhado esta alegria deste povo de sorriso fácil e de “morabeza”. Fui educada numa comunidade, onde todos partilhavam com todos, a humildade e a dificuldade me moldaram e consolidaram os meus alicerces, os meus valores e são hoje a essência que me acompanha em qualquer situação.
Feito os meus estudos secundários, licencie-me em Turismo e logo após terminar o curso em 2007 iniciei o meu percurso nessa indústria, mais precisamente como técnica num operador turístico. Nessa altura, conciliei a atividade profissional com a continuação dos estudos, tendo feito Pós-graduação em Gestão de Empresas Turísticas. Mais tarde, me especializei em igualdade de género, enquanto fazia voluntariado em duas Associações que abordavam questões étnicas e de género. Nasceu assim a minha veia ligada a questões de género.
2)Conte-nos sobre o Women in Tourism. Qual é a principal proposta? O que te motivou a criar o projeto?
O meu propósito é Empoderar as Mulheres que trabalham no setor do turismo. Por outro lado, e não menos importante, é reforçar a importância da igualdade, da diversidade e da inclusão, no seio das empresas e instituições de turismo.
As minhas experiências com as Associações que abordavam questões étnicas e de género fizeram-me enxergar cedo que precisava de algo mais para saciar a vontade de gritar ao mundo a minha insatisfação por ver tanta desigualdade entre homens e mulheres e começar a construir algo para inverter este paradigma.
Assim, tudo nasceu com a minha especialização em igualdade de género no trabalho. A partir deste momento nada mais parou-me, comecei a fazer palestras sobre empoderamento feminino, feminismo, violência doméstica e luta contra o racismo, como forma de estar perto dos que precisam ser escutados, conhecer mais a realidade a minha volta e, sobretudo, de levar uma mensagem de esperança aos que não se faziam ouvir.
Durante essa jornada, apercebi-me que não era só nas camadas mais vulneráveis da sociedade que se viam as diferenças e desigualdades de género.
É um fenómeno transversal, um problema psico-social, resultado de uma cultura muito machista, não trabalhada. Tudo isto serviu-me de inspiração e comecei a pesquisar mais profundamente assuntos relacionados e a estudá-los.
Levei os últimos dois anos a planear e a estruturar a Global Women in Tourism. Foi um sonho que conjuga mais de 10 anos de trabalho nestas duas áreas sociais e hoje vejo que faz cada vez mais sentido abordar/estudar o género no turismo.
O segundo relatório mundial sobre as mulheres no turismo, apresentado em 2019, revela dados interessantes, como por exemplo: que em escala global, 58% da força de trabalho no turismo pertence as mulheres. As mulheres ganham em média menos 14,7% do que os homens e têm mais formação académica.
Quando vejo dados sobre mulheres no turismo, há uma parte em mim que anseia por descortinar a informação e não paro de me questionar:
- Um em cada dez empregos no mundo é no turismo. A que preço?
- Quem são essas mulheres?
- Quais as suas origens?
- São mulheres caucasianas, negras, indígenas, asiáticas?
- Em que atividade trabalham?
- De forma o turismo impacta no desenvolvimento das suas vidas e profissões?
- Qual a percentagem de mulheres vitimas de assédio no local de trabalho, de violência baseada no género, etc?E de mulheres na informalidade?
- Qual a contribuição dessas mulheres no Turismo?
- A que tipo de vulnerabilidade estão expostas?
- Qual o grau de qualificação dessas mulheres?
A investigação em turismo deve ser feito através de uma perspectiva de género, ou seja, através de uma abordagem interseccional e apresentados de forma desagrupada, visto que as mulheres não são todas iguais.
É preciso aprender a ver as desigualdades e apresentar soluções para as mulheres. Portanto, podemos dizer que o turismo não é um fim, é uma ferramenta para gerar integração e equidade, para que possamos alcançar uma cultura mais igualitária.
3) De que forma busca empoderar outras mulheres? Como alguém que deseja criar um projeto como esse pode começar?
Através da Global Women in Tourism busco empoderar as Mulheres, de forma a extrairem todo o seu potencial, através de mentoria, da partilha de informação e de projetos que valorizam a força feminina. Ou seja, busco dar voz e oportunidade as mulheres no setor do turismo. Em outras palavras, damos voz a quem não a tem!
A ideia é, mostrá-las, o quão importante é termos o nosso “porquê” bem definido e criar uma rede consistente de contactos. Trabalhar por amor a causa que se defende, mas sobretudo, não se deixar intimidar ou ter receio de começar ou continuar.
Para criar um projeto ou uma ideia como esta, basta estudar o teu meio, investigar, informar e procurar os lugares certos dispostos a investir em projetos desta natureza e dar continuidade a qualquer iniciativa, de forma a não deixar morrer as ideologias e iniciativas a se defender.
4) Na sua opinião, quais são os maiores desafios para que haja igualdade de género no trabalho hoje?
Penso que o maior desafio é a mudança de mentalidades. O ser humano é resistente e apesar dos avanços que o mundo regista, há certamente imensos retrocessos. Tudo fruto de uma sociedade que sempre foi comandando por homens, logo, isto continua a ter impactos sociais devastadores.
Portanto, a cultura machista e preconceituosa não está preparada para ser contrariada. Penso também, que o medo da capacidade que a mulher tem em provocar e estabelecer mudanças é uma ameaça ao patriarcado, pois, já dizia, Barack Obama, “se o mundo fosse gerido por mulheres, ele seria bem melhor”
Veja como exemplo, o caso mais recente, o do abandono da Convenção de Istambul por parte da Turquia. Decisões como estas deveriam ser contestadas ao nível das autoridades internacionais, pois colocam em causa os direitos humanos e a vida de pessoas, sobretudo mulheres.
É prioritária que a perspectiva de género no turismo faça parte das agendas políticas, das instituições de turismo e das empresas.
5) A crise do novo coronavírus e o aumento de pessoas em teletrabalho destaca a potência das mulheres em realizar múltiplas tarefas, mas também alerta para a urgência em ter um olhar mais atento para o bem-estar das mesmas. Como a empresa e a liderança pode apoiar essas mulheres e incentivar seu crescimento nesse momento?
É difícil crescer sem uma rede de apoio – creche, escola, familiares, amigos próximos, etc. – no confinamento tudo isso desapareceu. Já reparou que as mulheres estão cansadas, para não dizer a beira de um esgotamento? A teoria tem a mulher como “multi task”, mas não esqueçamos que por detrás de uma mulher, temos um ser humano que por natureza e pela construção social tem imensas responsabilidades, é fato.
A pandemia veio exacerbar as desigualdades entre homens e mulheres, que já existiam. O Relatório de 2021 sobre a Igualdade de Género na União Europeia, publicado pela Comissão Europeia mostra-nos essa realidade.
O impacto da Covid-19 na vida das mulheres é desproporcional. Verificou-se aumento da violência doméstica, da carga laboral, do trabalho não renumerado, maior risco de desemprego e por aí em diante.
E este novo desafio que a pandemia trouxe, tende a piorar as coisas e que ninguém pense que será mais fácil, mais produtivo, ou ainda menos desgastante para a mulher trabalhar neste formato (teletrabalho). Pelo contrário, a mulher terá agora tudo num mesmo espaço e com isso o stress e o cansaço psicológico também aumentarão.
Claramente que haverá necessidade das empresas em criar melhores condições para que elas possam ser produtivas, sem correrem o risco de adoecerem.
O apoio psicológico deve ser uma prioridade, a criação de um espaço aprazível para o teletrabalho, rever as exigências no que toca a produtividade, as horas de trabalho. Penso que cada organização deve procurar um equilíbrio entre o que precisa e a forma como pode ser produzido.
6) O desemprego no setor do turismo cresceu consideravelmente com a crise que estamos a viver. Como apoiar mulheres que estão em busca de novas oportunidades?
Realmente os dados são assustadores em todo o mundo. Penso que neste momento todos devem aproveitar e apostar na capacitação.
Há imensas entidades que ofertam cursos de línguas estrangeiras, soft skills, digital, sustentabilidade, empreendedorismo, etc. É talvez o momento de apostar no desenvolvimento de novas competências, ou então de aprimorar as que se tem.
Quem não tem um plano, é a altura ideal de traçar um, com objetivos e metas bem definidos. É o momento certo para perceber qual o seu propósito, qual a sua contribuição neste mundo, o que lhe faz feliz? Tudo mudou, tudo pode desaparecer de um momento para outro, é preciso viver o presente.
Muitos negócios surgiram em plena pandemia e é notável a veia empreendedora do ser humano. Acho que com os devidos apoios – facilidade de aceder aos créditos, concursos e programas de empreendedorismo e liderança para mulheres com prémios estimulantes (mentoria e consultoria) – iremos ter imensas surpresas, visto que muitas mulheres querem empreender, porque querem ter liberdade financeira.
Pela experiência com grupos de mulheres empreendedoras de Portugal, Brasil, Cabo Verde, Reino Unido, o que todas almejam é a medida maternidade vs carreira, ou seja, serem elas próprias a decidir quando e quanto tempo querem dedicar a sua carreira e aos seus filhos.
7) Considera Portugal é um país machista? Em pontos que ainda temos que evoluir para uma sociedade com mais igualdade de género no trabalho?
Claro que é machista! O machismo está enraizado até o “tutano”! Quando penso no machismo, por estar muito em contacto com Cabo Verde – o meu país de origem – e com Portugal, tendo sempre a comparar as duas realidades. Cabo Verde herdou o machismo e sexismo do seu colono.
Aqui em Portugal e noutras partes do mundo, as mulheres são diariamente agredidas de diversas formas, quer seja por homens, quer por mulheres. Nos espaços públicos, no trabalho, em programas de televisão, em anúncios publicitários, e principalmente na esfera privada.
Para evoluir é preciso apostar na educação pela igualdade desde tenra idade. Também é necessário politicas que promovam a igualdade, a diversidade e a inclusão e a equidade nas diversas esferas.
Nas escolas, no trabalho, precisamos desconstruir o racismo, a xenofobia e o preconceito, caso contrário não há evolução, tampouco igualdade.
8) Não há dúvidas de que o mercado de trabalho precisa mudar. No entanto, como podemos incentivar essa mudança, enquanto indivíduos? Como se preparar para os desafios e injustiças de um mercado tão desigual?
A minha visão para este assunto é apostar na educação de forma permanente. A educação dos nossos filhos deve marcar o seu intelecto e a sua consciência. Educar nas escolas, nas universidades e apostar em formação nas empresas e instituições sobre igualdade, diversidade e inclusão.
A diversidade promove o êxito nas equipas, melhora a vida das pessoas e dos países e gera maior produtividade.
9) Que dicas daria para mulheres que querem trabalhar no setor de turismo?
Seja fiél a si mesma! É importante manter a nossa identidade, os nossos valores e criar uma boa rede de contatos.
Penso que ter uma mentora ou um mentor é um bom ponto de partida. O ensino não nos prepara para a realidade. A cadeia de valor do turismo é por si só um oceano muito vasto e temos de perceber onde é o nosso lugar.
Ter competências que nos diferenciam dos demais é importante. Eu apostei no voluntariado para contribuir de forma positiva na vida de outras pessoas e para aprender com as diferenças individuais e culturais de cada ser. Aconselho vivamente a ter o hábito de ler, de discutir ideias com tem mais experiência, de escutar com atenção os colegas, mas também a própria intuição.
Errar é talvez a melhor forma de aprender. Ser humilde para reconhecer as limitações e apostar no estudo na formação contínua.
O meu mantra é: o Poder de uma Mulher está em acreditar em si própria!
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