Com formação em Sociologia e Gestão de recursos humanos, Isabel Moço construiu sua carreira com a missão profissional de desenvolver pessoas e negócios. Coordenadora e Professora da Universidade Europeia, Isabel partilhou conosco algumas ideias sobre o processo de retorno aos escritórios e os desafios de gerir as inseguranças dos colaboradores neste momento.
Portugal, assim como todo o mundo, vive um período de incertezas em que as mudanças acontecem rapidamente na vida pessoal e profissional de cada um. A crise do Coronavírus mudou de uma hora para a outra a rotina de quem trabalha. Agora, o dia a dia das empresas volta pouco a pouco ao normal, e muitas pessoas precisam adaptar-se novamente à rotina nos escritórios.
No entanto, nem tudo será como antes, e encarar os desafios do “novo normal” impacta de diferentes formas as empresas e os colaboradores. Em um período de tantas mudanças e adaptações, é comum que algumas pessoas se sintam inseguras por diferentes razões, e é essencial que os gestores e o departamento de Recursos Humanos estejam atentos a isso.
É neste contexto que Isabel desenvolveu um estudo que avalia a insegurança dos portugueses com o retorno aos escritórios.
No recente estudo “(In)Segurança Laboral”, feito para a Universidade Europeia, Isabel investigou se os portugueses sentem-se seguros com as condições de trabalho e com a manutenção de seus empregos, nesta fase de regresso.
Para além disso, ela destacou a importância de gerir as inseguranças dos colaboradores neste momento e indicou algumas condições essenciais para a retoma.
Confira na entrevista abaixo quais são as principais incertezas e inseguranças dos colaboradores e como os gestores e o departamento de RH podem geri-las da melhor forma possível.
Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional. Qual a sua relação com a área de Recursos Humanos?
Creio que o meu percurso em RH seja ilustrativo de que a carreira pode ter alguma coisa de imprevisibilidade, sendo que o importante é que façamos por paixão.
Até ao 10º ano de escolaridade nunca esteve claro o que queria seguir. No 11ª ano tive uma disciplina de Sociologia e fiquei com a certeza de que era aquilo que queria. E foi o curso que fiz, o qual tinha um estágio no 5º ano – como escolhi a especialização em Sociologia do trabalho, “calhou” fazer o estágio nessa área, na RDP, atualmente RTP.
“Calhou” fazer o estágio na Direção de Pessoal, Gabinete de Gestão Técnica do Trabalho. E o “bichinho” entrou. Depois disso, voltei a estudar e fiz logo uma Pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos, seguindo-se um percurso de formação, consultoria, técnico e de ensino nesses domínios. Ao longo dos últimos quase 30 anos foi-se desenvolvendo esta paixão, e creio que este percurso é ilustrativo de que por vezes as paixões podem nascer pelo acaso.
E para trabalhar nesta área é realmente necessária muita paixão, o que também se faz com as experiências e pessoas boas da nossa vida. Neste momento, a minha relação com Recursos Humanos é fundamentalmente no ensino universitário, mas para que muito contribui todo o percurso técnico e de gestão que fiz até muito recentemente.
Muitas empresas já retomaram o trabalho nos escritórios. Como fazer uma transição positiva do teletrabalho para o trabalho presencial?
As mudanças são sempre desconforto, incerteza e adaptação. Quer seja do presencial para o remoto, ou em sentido contrário, há que, fundamentalmente, ter em conta duas variáveis: pessoas e processos (entre outras, mas com as pessoas em primeiro lugar).
“Acredito que esta pandemia vai implicar que estejamos permanentemente em alternância entre um regime e outro, com vantagens mas também com enormes desafios.”
Se passar para o “remoto” foi um “must have”, nem sempre considerando perfil do trabalhador, suas tarefas e responsabilidades, suas condições, restrições e limites, por outro foi a prova cabal que faltava para os céticos destes formatos mais flexíveis de organização do trabalho. Vários estudos entretanto realizados vieram indicar que níveis de produtividade, satisfação e segurança aumentaram significativamente.
Não será só por isso que as empresas os adotaram – teve de ser. E agora, que estamos lentamente a regressar às empresas (e dados recentes parecem prever um retrocesso), os cuidados que não se seguiram porque foi a resposta possível a uma situação de emergência, devem ser atendidos.
Apenas alguns desses cuidados, e admitindo que as empresas seguem todas as normas de segurança e funcionamento indicadas pelas autoridades:
As pessoas sentem-se seguras para voltar à empresa? Como se deslocam? Que contexto familiar/social têm e como impactam na rotina quotidiana (ex: assistência a filhos, idosos)? Querem voltar? Os sistemas de rotação são determinados “na secretária” ou foi escutado o trabalhador para os definir? Vantagens e riscos de “obrigar” o trabalhador a regressar?
E relativamente aos processos, deverá ser feita uma exaustiva reflexão sobre a real necessidade da presença física da pessoa na empresa. No fundo, questões/cuidados que devem ser atendidos, para que não tenhamos nas empresas um contingente pouco tranquilo e focado. Claro que nem sempre as empresas podem atender à vastidão de casos particulares e o negócio tem de funcionar. Baby steps, diria.
Qual o papel do RH neste processo?
O papel principal! Embora seja defensora de um modelo de organização em que a gestão de pessoas não será exclusivamente responsabilidade de RH, mas também de todas as pessoas que gerem pessoas, a verdade é que em grande parte das organizações, e embora possam também acreditar neste modelo, a capacitação e competências para o fazerem tem de ser proporcionada e acautelada.
“Assim, creio que todo este trabalho de mudança, seja de presencial para remoto ou vice-versa, deva ser assumido não exclusivamente por RH, mas por todos.”
Nesse contexto, caberá a cada profissional de RH ser mentor destes processos e não permitir que lógicas exclusivamente focadas no negócio (que ele também deverá assumir) ou nos processos, se sobreponham à lógica da gestão das pessoas. Sabemos que haverá um longo caminho a percorrer, até porque nem sempre RH tem “assento no Board”, mas acredito que seja essa a condição para que qualquer mudança tenha, à partida, condições para vingar.
No seu estudo (In)Segurança Laboral para a Universidade Europeia, investigas a insegurança que os colaboradores podem sentir no retorno aos escritórios. Pode contar-nos um pouco mais sobre como surgiu seu interesse em realizar este estudo?
Este estudo surge na sequência de um outro estudo realizado dois meses antes na Universidade Europeia, em plena fase de decreto de confinamento com imensas restrições ao normal funcionamento social e económico, que nos indicou que a grande maioria das empresas rapidamente percebeu que era possível, por exemplo num fim-de-semana, mudar as pessoas para trabalho a distância.
“Esse estudo manifestou que nem todas as condições estavam previstas ou foram asseguradas, e que os trabalhadores mostravam algumas preocupações.”
A título de exemplo, o estudo revelou que um dos grandes argumentos do trabalho remoto – a maior possibilidade de conciliação entre esferas de vida, nomeadamente a pessoal e a profissional – se revelava de forma antagónica ao que se esperava. Isso por conta das próprias condições do confinamento, como por exemplo a presença de crianças em casa e de os pais terem de os apoiar nas atividades escolares.
Com os primeiros anúncios de retoma de atividade regular, e de que as pessoas começariam a “ser chamadas” a voltar ao seu posto físico de trabalho, surgiu a um grupo de professores a questão: “Mas as pessoas sentem-se seguras para voltar?” – e assim, lançamos o estudo sobre (In)segurança laboral, que foi conduzido em dois eixos: segurança face à continuidade/manutenção do emprego e segurança face às condições e conteúdo do trabalho.
Este último nos fez sentido também por estarem a começar a evidenciar-se um significativo conjunto de impactos económicos negativos, representado pelo número de pessoas em Lay off, despedimentos, insolvências, quebra dos índices de confiança, entre outros.
A insegurança dos colaboradores em relação à volta ao trabalho está relacionada apenas a questões de saúde ou há outras preocupações envolvidas?
O nível de insegurança laboral dos portugueses, segundo os dados deste estudo, não é muito significativo, pois quer ao nível da segurança no regresso ao local de trabalho, quer a nível de emprego, os dados revelam uma preocupação moderada.
Foi um pouco surpreendente este resultado, que entendemos como otimismo relativamente à situação e a expectativa de que em breve tudo passaria, e voltaria ao que era antes.
Costumo referir que numa escala entre otimismo – que nos leva a investir e arriscar mais, e o pessimismo – que nos faz ter mais cautela e cenarizar negativamente, a população do estudo estaria muito confiante, ainda que com um ou outro apontamento de incerteza/insegurança, como por exemplo:
- A insegurança relacionada com o receio de perder ou reduzir condições e qualidade do trabalho é superior ao receio de perder o emprego
- O receio de perder o emprego e o receio em perder ou reduzir qualidade do trabalho é superior no género feminino
- O nível de escolaridade parece ter uma relação com o nível de segurança percecionado, pois quanto menores são as habilitações académicas, maior é a perceção de insegurança laboral
- A faixa etária também parece ter alguma importância na perceção de segurança laboral, pois quanto maior a idade, menor é a perceção de insegurança em perder o emprego e em perder qualidade nas condições de trabalho
- Os respondentes mais jovens no mercado de trabalho revelam níveis mais elevados de insegurança laboral
- A antiguidade parece constituir-se como um atenuador do nível de insegurança, pois quanto menor esta é, mais insegurança se expressa
- Os respondentes que não estão em teletrabalho revelam uma perceção de insegurança laboral mais elevada, comparativamente com os restantes participantes.
De um modo geral, o estudo revelou que a preocupação predominante não estava nas condições de bem estar e saúde, embora já nessa época se discutisse muito os impactos ao nível da saúde mental.
Como as empresas podem gerir as inseguranças dos colaboradores nesta retoma?
A cultura da empresa, a sua estratégia, estilo de gestão e pessoas são as condições fundamentais para a retoma.
Em tudo isto, destaco duas competências que, quanto a mim, são cruciais nestas circunstâncias: comunicação e ética.
Ilustro: como pode o gestor de uma empresa anunciar publicamente que não haverá despedimentos, quando tem quebras no volume de negócios no primeiro semestre, de 70 ou 90%? Como se sentirão os seus trabalhadores ao ouvir estas notícias, quando “sofrem” diariamente pressão pelos números (entenda-se negócio)? Como confiar numa gestão que não informa e não ouve, e as pessoas sabem das “novidades” nos corredores ou, pior, pelos próprios clientes ou fornecedores?
“Costuma-se dizer que é nos momentos de crise que o melhor e o pior das pessoas se revela e creio que esta é também uma excelente oportunidade para separar os gestores dos verdadeiros líderes.”
Deixaria apenas algumas notas, inspiradas no melhor e pior que tenho encontrado, e que pode realmente contribuir para que as pessoas se sintam mais seguras no trabalho e na empresa:
- Desde logo canais de comunicação completamente abertos, em todos os sentidos. Não quer dizer que todos os trabalhadores tenham de saber de tudo, mas se houver canais e fluxos regulares, as pessoas tenderão a sentir-se mais confortáveis e seguras (mesmo que a informação seja negativa, embora aqui a cultura e a experiência da empresa sejam determinantes fortes)
- Princípios éticos e deontológicos no topo das competências, sobretudo de quem gere pessoas. Como se faz um Lay off sem o explicar às pessoas? E um despedimento sumário sem contextualizar? Como se deixa uma pessoa sair sem lhe perguntar “porque vais embora”? De que forma instaurar um processo disciplinar a uma pessoa por não usar um equipamento de proteção ou seguir uma instrução de segurança, sem perceber por quê? Como se faz discriminação em acesso a condições, como por exemplo, um trabalhador poder ficar a trabalhar a partir de casa, sem que haja qualquer critério, só porque isso depende da sua chefia direta?
Muitas vezes pensamos na saúde física dos colaboradores e não damos a atenção necessária à saúde mental dos mesmos. Qual a importância de ter esta atenção e como cuidar da saúde mental dos funcionários neste momento?
Bem costuma referir-se que doenças como a depressão, entre outras silenciosas do mesmo foro, são as doenças da modernidade. Não resta qualquer dúvida que as pressões diárias (pessoa, empresa, família, comunidade, sociedade, globo) são imensas e “nem todas as canas dobram – algumas quebram”.
Basta ligar a televisão, ver um noticiário e percebemos que estamos num mundo e numa época em que os desafios são tremendos.
“A gestão de pessoas nunca pode ser alheia ao(s) contexto(s) que vivemos, o que significa que deve dar grande atenção à minimização, despistagem e monitorização dos riscos psicossociais.”
Até porque sabemos os impactos sociais e na produtividade que acarretam. Na realidade, no início deste ano, um dos hot themes em RH era a saúde e o bem estar, mas parece-me que o efeito pandemia veio alterar as prioridades (e tinha de ser).
Atualmente discutimos muito esta questão da saúde mental e de facto a incerteza do momento pode trazer efeitos perversos na saúde das pessoas e das organizações. Temo também que a gestão de pessoas não possa estar suficientemente atenta a esta variável com impactos que só muito mais tarde perceberemos.
Muitas empresas ainda irão manter os colaboradores, ou parte deles, em regime de teletrabalho. Neste caso, como um líder pode conservar a motivação e produtividade desses colaboradores?
Este é um dos grandes desafios da atualidade. Quando aprendeu uma chefia a gerir a sua equipa remotamente? Em que momento da transição do presencial para o remoto essas pessoas perceberam que tinham outro tipo de papel com as suas pessoas/equipas?
São hoje comédia as situações em que a chefia acompanha permanentemente as suas pessoas/equipa – hora a hora. Também o são as preocupações representadas nos “pequenos almoços ou sunsets virtuais”, quando ninguém quer ali estar e a repetição acaba por provocar efeitos perversos.
“Diria que ponderação e bom senso devem ser a tónica para promover, quer produtividade, quer satisfação. Apoiar a distância é estar presente sem ser invasivo.”
É ser objetivo, focado e, sobretudo, realmente considerar as pessoas, o que por si só dará resposta ao que as pessoas precisam e procuram como suporte.
Por tudo isto, em Outubro a Universidade Europeia lançará um novo programa de Pós-graduação, on line, sobre gestão de pessoas, equipas e trabalho remoto.
Como o RH pode atuar para propor melhores soluções em momentos de crise como este? Tanto para empresas quanto para seus colaboradores.
Basicamente assumindo a ideia de que as pessoas são o ativo mais importante de uma organização e ser o representante deste princípio em qualquer fórum.
O momento atual trouxe muitas reflexões para a gestão de Recursos humanos. Quais lições esta crise trouxe para a área?
Que o mundo VUCA pode ter expressões tremendas e vingarão aqueles cujos valores e princípios estiverem no seu ADN. Naturalmente que as empresas vivem dos seus negócios, mas são as pessoas que os fazem.
São “cases” as empresas que prestes a fechar são ressuscitadas pela vontade dos seus trabalhadores. Acredito na ideia de que se tratarmos bem as pessoas – bem significa com idoneidade, ética, consideração, respeito profundo pelo ser humano – elas tratarão muito bem dos nossos negócios, e acho que esta pandemia veio reforçar esta ideia. Aqueles que conseguirem gerir efetivamente as suas pessoas com estes princípios, merecerão destaque no futuro.